9 de dezembro de 2008

Como interpretar Gênesis 1

Dr. Richard M. Davidson

Com tal beleza, majestade e simplicidade começa o relato da Criação em Gênesis. Porém, uma análise do capítulo 1 de Gênesis não é tão simples e direta como uma leitura casual do texto bíblico poderia sugerir. A interpretação moderna da cosmogonia (estudo das origens) bíblica em Gênesis 1 é extremamente complicada, dividida entre uma interpretação não-literal e a literal. Vamos brevemente descrever sete destas interpretações e avaliar cada uma à luz dos dados bíblicos.

Interpretações principais de Gênesis 1

Interpretações não-Iiterais



Estudiosos que apóiam uma interpretação não-literal de Gênesis abordam a questão de diferentes modos. Alguns consideram Gênesis 1 como mitologia’; outros consideram-no poesia; alguns tomam-no como teologia3 ainda outros o consideram como simbolismo.

Comum a todas estas interpretações não-literais ë a suposição de que o relato em Gênesis não é um relato literal e histórico da Criação.



Interpretações literais



Aqueles que aceitam literalmente o relato da Criação também diferem em sua abordagem da cosmogonia bíblica de Gênesis 1. Vamos indicar três pontos de vista.

Teoria de um intervalo ativo. Esta opinião é também conhecida como a teoria de ruína-restauração. Segundo esta opinião, Gênesis 1:1 descreve uma criação originalmente perfeita a um tempo desconhecido (milhões ou bilhões de anos atrás). Satanás era o regente deste mundo, mas por causa de sua rebelião (Isaías 14:12-17), o pecado entrou no Universo. Deus condenou a rebelião e reduziu o mundo ao estado arruinado e caótico descrito em Gênesis 1:2. Os que mantêm esta opinião traduzem Gênesis 1:2 como “a terra tomou-se sem forma e vazia”.

Gênesis 1:3 e os versos seguintes apresentam então o relato de uma criação posterior na qual Deus restaura o que tinha sido arruinado. A coluna geológica é usualmente inserida no período da primeira criação (Gênesis 1:1) e o caos subseqüente, e não em conexão com o Dilúvio bíblico.

Teoria de uma criação prévia “sem forma e vazia”. Segundo esta interpretação os termos hebraicos tohu (“sem forma”) e bohu (“vazia”) em Gênesis 1:2 descrevem o estado sem forma e sem conteúdo da Terra. O texto se refere a um estado anterior à Criação mencionada na Bíblia. Esta opinião tem duas variantes principais baseadas em duas análises gramaticais diferentes.

A primeira variante considera Gênesis 1:1 como uma cláusula dependente, em paralelo com os relatos da Criação extrabíblicos do Oriente Próximo. Daí a tradução proposta: “Quando Deus começou a criar os céus e a Terra. Portanto, Gênesis 1:2 equivale a um parêntesis, que descreve o estado da Terra quando Deus começou a criar (“ a Terra estando...” ) e Gênesis 1:3 em diante descreve a obra criadora efetiva (“E Deus disse...” )

As outras variantes principais consideram Gênesis 1:1 como uma cláusula independente, e como um sumário ou introdução formal ou título que é então ampliado no resto da narrativa. Gênesis 1:2 é visto como uma cláusula circunstancial ligada com o verso 3:” A Terra, porém, era sem forma e vazia.... Disse Deus: ‘Haja luz’.

Deste ponto de vista, apoiado por qualquer das análises gramaticais mencionadas acima, Gênesis não oferece um começo absoluto de tempo para o cosmos. Criação a partir do nada não é implicada, e não há indicação da existência de Deus antes da matéria. Nada é dito da criação da matéria original descrita no verso 2. Trevas, abismo e águas de Gênesis 1:2 já existiam no começo da atividade criadora de Deus.

Podíamos mencionar de passagem uma outra opinião pré-Criação; esta toma o verso 2 como uma cláusula dependente “quando...”, mas difere da primeira variante na interpretação dos termos tohu e bohu, e os termos para “trevas” e “abismo” — todos significando “nada”. Assim o verso 1 é visto como um sumário; o verso 2 diz que inicialmente não havia “nada”: e o verso 3 descreve o começo do processo criador.

Teoria de um estado inicial “sem forma e vazio”. Uma terceira interpretação literal da cosmogonia bíblica é a de um estado inicialmente “sem forma e vazio”. Esta é a opinião tradicional, tendo o apoio da maioria dos intérpretes judeus e cristãos através da história. Segundo esta interpretação, Gênesis 1:1 declara que Deus criou do nada a matéria original chamada céus e Terra no ponto de seu começo absoluto. O verso 2 esclarece que quando a Terra foi primeiro criada ela estava num estado de tohu e bohu — sem forma e vazia. O verso 3 e os versos seguintes então descrevem o processo divino de dar forma ao informe e de encher o vazio.

Esta interpretação tem duas variantes. Alguns consideram os versos 1 e 2 como partes do primeiro dia de uma semana de sete dias. Podemos chamá-la a interpretação “sem intervalo”. Outros vêem os versos 1 e 2 como uma unidade cronológica separada por um intervalo de tempo do primeiro dia da Criação descrito no verso 3. Esta opinião é usualmente chamada a do ‘‘intervalo passivo”.



Avaliação



O espaço não permite uma avaliação pormenorizada de todos os prós e contras de cada opinião aqui resumida, mas apresentaremos o esboço dos dados bíblicos que se referem às teorias sobre a origem da matéria e da vida e sua existência primitiva.



Interpretações não-Iiterais.



Ao considerar todas as interpretações não-literais e não-históricas, precisamos levar em conta dois fatos bíblicos significativos:

1. O gênero literário de Gênesis 1-11 indica a natureza intencionalmente literal da narrativa. O livro de Gênesis é estruturado pelo termo gerações (hebraico toledoth) em relação com cada seção do livro (13 vezes). Este é um termo usado alhures em conexão com genealogias que têm que ver com um relato exato de tempo e história. O uso de toledoth em Gênesis 2:4 mostra que o autor pretendia que a narrativa da Criação fosse tão literal como o resto das narrativas de Gênesis.’3 Outros escritores bíblicos tomam Gênesis 1-11 como literal. Com efeito, todos os escritores do Novo Testamento se referem a Gênesis 1-11 como história literal.

2. Evidência interna também indica que o relato da Criação não deve ser tomado simbolicamente como sete longos períodos segundo o modelo evolucionista — como é sugerido tanto por eruditos críticos como evangélicos. Os termos tarde e manhã significam um dia literal de 24 horas. Alhures nas Escrituras, o termo dia com um número ordinal é sempre literal. Se os dias da Criação são simbólicos, Êxodo 20:8-11 que comemora um Sábado literal não tem sentido. Referências à função do Sol e da Lua para sinais, estações, dias e anos (Gênesis 1:14), também indicam tempo literal e não simbólico. Portanto, devemos concluir que (Gênesis 1:1 a 2:4) a indica sete dias literais, consecutivos, de 24 horas.

Embora as interpretações não-literais devam ser rejeitadas no que negam (a saber, a natureza literal e histórica do relato de Gênesis), não obstante possuem um elemento de verdade no que afirmam. Gênesis 1-2 têm que ver com mitologia — não para afirmar uma interpretação mitológica, mas como polêmica contra a antiga mitologia do Oriente Próximo.Gênesis 1:1 a 2:4 provavelmente são estruturados de um modo semelhante à poesia hebraica (paralelismo sintético), mas poesia não nega historicidade (ver, por exemplo, Êxodo 15, Daniel 7 e aproximadamente 40 por cento do Antigo Testamento, que são em poesia.) Escritores bíblicos freqüentemente escrevem em poesia para afirmar historicidade.

Gênesis 1-2 apresentam uma teologia profunda: doutrinas de Deus, Criação, humanidade, Sábado, etc. Mas nas Escrituras, teologia não se opõe à história. Com efeito, a teologia bíblica tem sua raiz na história. De igual modo há um simbolismo profundo em Gênesis 1. Por exemplo, a linguagem do Jardim do Éden e a ocupação de Adão e Eva claramente aludem ao simbolismo do santuário e ao trabalho dos levitas (ver Êxodo 25-40). Assim o santuário do Éden é um símbolo ou tipo do santuário celestial. Mas porque aponta para algo diferente não diminui sua realidade literal.

Gerhard Von Rad, um erudito crítico que não aceita o que Gênesis 1 afirma, ainda assim confessa honestamente: “O que é dito aqui [Gênesis 1] é para ser tomado inteiramente e exatamente como está.”

Portanto, nós afirmamos a natureza literal e histórica do relato de Gênesis. Mas qual interpretação literal é correta?



Interpretações literais



Primeiro, precisamos de início rejeitar a teoria de ruína-restauração ou “intervalo ativo” puramente por razões de gramática. Gênesis 1:2 claramente encerra três cláusulas nominais e o sentido fundamental de cláusulas nominais em hebraico é algo fixo, um estado, não uma seqüência ou ação. Segundo as regras da gramática hebraica, precisamos traduzir “a Terra era sem forma e vazia”, e não “a Terra tomou-se sem forma e vazia”. Assim a gramática hebraica não deixa lugar para a teoria de um intervalo ativo.

Que dizer da interpretação de uma criação prévia “sem forma e vazia” na qual o estado de tohu-bohu de Gênesis 1:2 precede a criação divina? Alguns apóiam essa teoria traduzindo o verso 1 como urna cláusula dependente. Mas a melhor evidência favorece a leitura tradicional de Gênesis 1:1 como uma cláusula independente: “No princípio criou Deus os céus e a Terra.” Isto inclui a evidência dos acentos no hebraico, todas as antigas versões, considerações léxico-gramaticais, sintáticas e estilísticas, e comparação com antigas lendas do Oriente Próximo. O peso da evidência me leva a reter a leitura tradicional.

Outros suportam a teoria de uma criação prévia “sem forma e vazia” interpretando Gênesis 1:1 como um sumário do capítulo todo (o ato da criação só começando no verso 3). Mas se Gênesis 1 começa apenas com um título ou sumário, então o verso 2 contradiz o verso 1. Deus cria a Terra (verso 1), mas a Terra existe antes da Criação (verso 2). Esta interpretação não pode explicar a referência à existência da Terra já no verso 2. Rompe a continuidade entre os versos 1 e 2 no uso do termo terra. Concluo, portanto, que Gênesis 1:1 não é simplesmente um sumário ou título do capítulo todo.

Contra a sugestão de que todas as palavras em Gênesis 1:2 simplesmente implicam “nada”, deve ser dito que o verso 3 e os versos seguintes não descrevem a criação da água, mas assume sua existência prévia. O termo tehom — “abismo” — combinado com tohu e bohu (como em Jeremias 4:34) não parecem referir-se ao nada, mas à Terra num estado sem forma e vazia coberta de água.

Isto nos leva à teoria de um estado inicialmente sem forma e vazio. A seqüência do pensamento em Gênesis 1:1 -3 tem levado a maioria dos intérpretes cristãos e judeus a esta opinião, que, por conseguinte é chamada a opinião tradicional.



A seqüência natural de Gênesis 1-2



Concordo com esta opinião, porque acho que só esta interpretação obedece à seqüência natural destes versos, sem contradição ou omissão de qualquer elemento no texto.

A seqüência do pensamento em Gênesis 1-2 é como segue:



a. Deus antecede a criação (verso 1).

b. Há um princípio absoluto do tempo com relação a este mundo e às esferas celestes que o cercam (verso 1).

e. Deus cria os céus e a Terra (verso 1), mas para começar eles são diferentes do que agora, são “sem forma” e “vazios” (tohu e bohu; verso 2).

d. No primeiro dia da semana de sete dias da Criação, Deus começa a formar e a encher o tohu e bohu (verso 3 e os versos seguintes).

e. A atividade divina de “formar e criar” é efetuada em seis dias sucessivos de 24 horas cada.

f. No final da semana da Criação, os céus e a Terra estão terminados (Gênesis 2:1). O que Deus começou no verso 1 está agora finalizado.

g. Deus descansa no sétimo dia, abençoando-o e santificando-o como um memorial da Criação

(2:1-4).



A ambigüidade do quando



Os pontos acima estão claros na seqüência do pensamento de Gênesis 1-2. Não obstante, há um aspecto crucial neste processo da Criação que o texto deixa aberto e ambíguo: Quando ocorreu o princípio absoluto dos céus e da Terra no verso 1? Foi no começo dos sete dias da Criação ou algum tempo antes? É possível que a matéria bruta dos céus e da Terra em seu estado informe fosse criada muito tempo antes dos sete dias da semana da Criação. Esta é a teoria do “intervalo passivo”. Também é possível que a matéria bruta descrita em Gênesis 1:1-2 esteja incluída no primeiro dia da semana da Criação. Esta se chama a teoria do “não intervalo”.

Esta ambigüidade no texto hebraico tem implicações na interpretação do Pré­cambriano da coluna geológica, se a gente equaciona o Pré-cambriano com a “matéria bruta” descrita em Gênesis 1:1-2 (naturalmente esta equação está sujeita a debate). Há a possibilidade de um Pré­cambriano recente, criado como parte da semana da Criação (talvez com a aparência de idade alta). Há também a possibilidade de que a “matéria bruta” fosse criada no princípio absoluto da Terra e das esferas celestes circundantes, talvez milhões ou bilhões de anos atrás. Este estado inicial informe e vazio é descrito no verso 2. O verso 3 e os versos seguintes então descrevem o processo de formar e encher durante a semana da Criação.

Concluo que o texto bíblico de Gênesis 1 deixa margem tanto para (a) um Pré-cambriano recente (criado como parte dos sete dias da criação) ou (b) rochas muito mais antigas e sem fósseis, com um longo intervalo entre a criação da “matéria bruta” descrita em Gênesis 1:1-2 e os sete dias da semana da Criação descrita no verso 3 e nos versos seguintes. Mas tanto num caso corno no outro, o texto bíblico requer urna cronologia breve para a vida na Terra. Não há margem para um intervalo de tempo na criação da vida na Terra: ela surgiu do terceiro ao sexto dias literais e consecutivos da semana da Criação.





Richard M. Davidson (Ph.D., Andrews University) é o catedrático do Departamento do

Antigo Testamento do Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia, Berrien Springs,

Michigan, E.U.A. Ele é autor de diversos artigos e Livros, incluindo Typology in Scripture (Andrews University Press, 1981), Love Song for the Sabbath (Review and Herald, 1987), e lo the Footsteps of Joshua (Review and Herald, 1995).


Fonte: Revista Diálogo Universitário 6:3 – 1994, págs. 9 e 12.

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

A teoria do intervalo (creio) produz algumas lacunas no próprio assunto (criação) e noutros referente a bíblia...