10 de dezembro de 2008

A natureza humana de Jesus

Pedro Apolinário

Dentre os muitos temas da Cristologia que desde os tempos pós-apostólicos têm gerado inúmeros debates, há um que permanece com certo grau de indefinição: era a natureza humana de Cristo pecaminosa ou não?

Diria inicialmente que ainda não temos posição definida da Igreja Adventista a respeito, tal a complexidade do problema.

É importante destacar, todavia, que "assim como a fé em Cristo constitui a alma do Cristianismo puro e prático, igualmente a verdadeira doutrina acerca de Cristo é o âmago de toda a teologia que mereça o nome de Cristã.” (1) Por este motivo, com o espírito dos bereanos (Atos 17:11), examinemos as Escrituras objetivando maior compreensão da natureza humana de Cristo.

Como o Filho de Deus, o fato de o Criador do Céu e da Terra ter vindo a este mundo nascer como Filho do homem (reunindo em uma pessoa as naturezas divina e humana) transcende a limitada compreensão do homem. Por isso

a Bíblia denomina este acontecimento como o grande mistério da piedade (I Tim. 3:16). Embora a encarnação seja mistério para nós, somos encorajados pelo Espírito de Profecia (Review and Herald, 5-4-1906) a estudá-la orientados pelo Espírito Santo.

Pensamentos úteis: "A humanidade do Filho de Deus é tudo para nós. É a corrente de ouro que liga nossa alma a Cristo, e por meio de Cristo a Deus.” (2)

"Evite toda discussão a respeito da humanidade de Cristo que dê lugar a mal-entendidos.” (3)

"As duas expressões humano e divino, em Cristo, tornaram-se unidas e inseparavelmente uma, contudo mantinham uma distinta individualidade.” (4)

Todos caímos pelo pecado do primeiro Adão, mas todos seremos libertados do pecado pela obediência do segundo Adão. Cristo tomou o lugar de Adão, para ser aprovado onde o pai da raça humana falhou.

É essencial saber que Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, porque em virtude da duplicidade de Seu trabalho era necessário que ele fosse divino e humano. Como divino trouxe Deus aos homens; como humano elevou os homens até Deus.

Heresias primitivas: As principais heresias surgiram da dificuldade em harmonizar a divindade com a humanidade. Duas escolas se opuseram neste sentido: a de Alexandria dando ênfase à divindade, e a de Antioquia, defendendo que Cristo era apenas humano.

Neste conflito se destacaram os seguintes grupos:

1. Os ebionitas, devido a sua formação judaica, negavam a natureza divina de Cristo, apresentando-o como mero homem.

2. O docetismo, por outro lado, negava a natureza humana de Cristo, porque seus adeptos julgavam que Sua pureza não podia estar ligada à matéria, que reputavam inerentemente má. Defendiam um corpo aparente e não carnal como o nosso.

3. O cerintianismo sustentava que a união das duas naturezas só se processou por ocasião do batismo de Jesus, e se desfez pouco antes de Sua morte.

4. O monofisismo, como o próprio nome indica, defendia uma só natureza para Cristo. A teologia bíblica nos evidencia que em Cristo há duas naturezas, mas uma única personalidade.

5. O apolinarianismo mutilou a natureza humana de Cristo, negando que tivesse alma humana.

6. O eutiquianismo defendia que as duas naturezas de Cristo se uniram em uma só, essencialmente divina.

7. O pelagianismo afirmava que os homens não nascem pecadores, mas assim se tornam por imitar o exemplo pecaminoso de Adão; por outro lado, chegamos a ser justos imitando o exemplo de Cristo.

Estas controvérsias dividiram a Igreja por séculos, porque muitos havia que tentaram ir além das revelações divinas.

O problema na IASD: Desde os pioneiros até hoje, assumimos duas posições distintas quanto à humanidade de Cristo: um grupo defende que Ele veio com a natureza de Adão antes da queda (pré-lapsarianista); outro, que veio com a natureza adâmica após a queda (pós-lapsarianista).

A Organização Adventista, nem nas 22 "Declarações de Nossa Crença", nem nas mais recentes 27 "Declarações das Crenças Fundamentais", votadas em Dálias, em abril de 1980, tratou do assunto.

E. J. Waggoner declarou que Cristo possuía a natureza pecaminosa do homem. (5) O Pastor W. W. Prescott, num sermão publicado em "The Bible Echo" (6/01/1896), afirma enfaticamente que Cristo tomou sobre Si a carne pecadora. (6)

Quando o livro Questions on Doctrine foi publicado (1957), e apareceu a taxativa afirmação da absoluta impecabilidade da natureza humana de Cristo, isto chocou a alguns como M. L. Andreasen, que escreveu o seguinte: "Tal ensino era contrário ao que os adventistas sempre haviam crido e Ensinado. (7)

Mais recentemente duas lições da Escola Sabatina apresentaram de modo diferente a natureza humana de Cristo.

I — A do primeiro trimestre de 1983, escrita por Norman R. Gulley, dava ênfase à natureza humana não-pecaminosa. As principais posições do autor são:

a) Cristo é nosso substituto.

b) Pecado não é apenas um ato, mas separação de Deus. Cristo assumindo a natureza humana manteve inflexível união com Deus.

c) Quanto à natureza física, Cristo é semelhante a nós. mas quanto à natureza moral e espiritual era semelhante a Adão antes da queda. Cristo é o segundo Adão por não ter propensões para o pecado.

d) Não somos culpados pelo pecado de Adão, não nascemos pecadores, mas com tendências pecaminosas.

e) A missão de Cristo foi salvar pecadores (Luc. 19:10). Se possuísse natureza pecaminosa, era também um pecador, necessitando Ele mesmo de um salvador

II — A lição de Herbert Douglass (quarto trimestre de 1984) opõe-se à de Gulley, por defender que Cristo tomou a natureza pecaminosa.

Seus argumentos essenciais são:

a) Cristo devia tomar a natureza caída para ser nosso exemplo.

b) Para bem compreender a natureza humana, era necessário perfeita identificação com o homem.

c) Não poderia com justiça haver condenado o pecado na carne, se

a Sua fosse intrinsecamente diferente da carne humana.

d) As expressões bíblicas: "Ele tomou a descendência de Abraão" (Almeida Antiga; Heb. 2:16) " ...segundo a carne veio da descendência de Davi" (Rom. 1:3), são usadas como prova de que Jesus tomou uma natureza pecaminosa derivada de Abraão e Davi.

O amplo contexto da Bíblia, todavia, prova que estes versos não estão considerando a natureza de Cristo, mas a Sua missão. Assim como Deus chamou a Abraão para formar um povo através do qual abençoaria todas as nações (Gên. 22:18), semelhantemente Jesus veio através de Maria para salvar as nações. Mat. 1:18, 21. Veja Ministry, junho de 1985, pág. 16

e) Defende sua posição com Hebreus 2:14; 4:15; 5:7-9. Comentando Hebreus 5:7-9, Douglass afirma: Se Cristo tivesse a natureza de Adão antes da queda, não teria necessidade de aprender neste mundo.

f) Em defesa de seu ponto de vista, cita Ellen G. White: "Cristo tomou sobre Sua natureza divina a forma e natureza do homem caído." — The Spirit of Prophecy, vol. 2, pág. 39.

g) Na lição do dia 3-11-84, lemos: “Ele [Cristo] reteve o caráter de Deus enquanto foi sobrecarregado com a natureza ou constituição pecaminosa."

Tanto Gulley quanto Douglass se valem da Bíblia e de Ellen G. White em defesa de suas posições contrárias.

A análise das duas lições deixa nos a impressão de que os argumentos de Gulley são mais lógicos, consistentes e em harmonia com as Escrituras e o Espírito de Profecia.

Inegavelmente a Bíblia apresenta a Cristo como nosso Substituto e Exemplo, mas a salvação não a recebemos apenas por imitar o exemplo digno de vida que Ele nos legou. Seu papel como Substituto ocupa posição primordial, enquanto como Exemplo um lugar subordinado.

Romanos 8:3; II Coríntios 5:21; Filipenses 2:7 e Hebreus 2:14 são usados por Gulley e Douglass em defesa de suas conclusões. Confrontando estes versos com outros, concluímos que é difícil aceitar que a natureza humana de Cristo seja pecaminosa. Os textos citados afirmam que Jesus era homem, que veio na semelhança, mas não na identidade do homem.

Semelhança não significa igualdade. A serpente de bronze do deserto não era destruidora, mas se assemelhava a uma serpente destruidora.

Sobre Romanos 8:3 escreveu A.V. Olson: "A expressão ‘Deus enviando Seu Filho em semelhança da carne do pecado’ não deve ser interpretada como significando que Deus enviara Seu Filho em carne pecaminosa. A semelhança é um símile, uma comparação, uma aparência externa e não algo absolutamente igual. Uma fotografia de determinada pessoa é a semelhança da aparência exterior de quem se deixou fotografar, mas não aquela pessoa. Assim ocorre com a carne de Cristo. Assemelhava-se à carne dos homens no meio dos quais viveu, mas achava-se livre de qualquer mancha de pecado.” (8).

Solução bíblica: A Bíblia afirma que todos os descendentes de Adão foram concebidos em pecado, logo todos são pecadores. Essa foi exatamente a confissão de Davi no Salmo 51:5: "Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe."

Sendo Adão cabeça e representante geral de toda a raça, a sua queda fez com que todos os homens caíssem. Isto é o que nos diz Paulo em duas passagens:

a) Romanos 5:19 "... pela desobediência de um só homem muitos

se tornaram pecadores ..."

b) I Coríntios 15:22 "... em Adão todos morrem..."

A única exceção a esta regra geral foi o nascimento de Cristo, que esteve livre do pecado original, porque Sua natureza humana foi formada no ventre de Maria pelo poder do Espírito Santo, e o que vem diretamente de Deus não pode ser maculado pelo pecado.

O apóstolo João, em seu evangelho (1:13), confirma que Cristo não nasceu da vontade da carne, mas do Espírito.

As seguintes passagens apresentam a Cristo livre de pecaminosidade e sem propensão para o pecado:

l. II Coríntios 5:21: "Aquele que não conheceu pecado, ele O fez pecado por nós; para que nEle fôssemos feitos justiça de Deus."

O Professor Dederen diz sobre este verso: "Se fez pecado" não é uma expressão muito comum. Entretanto, parece-me claro que quer dizer: tratado como um pecador, feito para carregar a pena do pecado, ou algo semelhante. 'Deus mesmo', comenta Kari Barth, 'olhou-O e O tratou como um pecador.” (9)

"Ele tornou-Se pecado por nós não na natureza pelo nascimento, mas em missão pela morte." (Norman R. Gulley.)

O livro Questions on Doctrine, preparado por professores de teologia e líderes adventistas, na página 56, comentando a expressão "Ele O fez pecado por nós" declara: "Esta expressão paulina tem desconcertado teólogos durante séculos, mas, por mais que signifique, certamente não quer dizer que nosso Imaculado Senhor Se tornou um pecador. O texto declara que ele foi feito (como pecado). Portanto, deve significar que Ele foi contado com os transgressores (Isa. 53:12) e que tomou o fardo e a penalidade que nos cabiam."

De acordo com muitos comentaristas, pecado nesta passagem significa "oferta pelo pecado". Veja o Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo, vol. 4, pág. 350, de Russell Norman Champlin.

2. Hebreus 7:26 confirma que Ele não tinha natureza pecaminosa.

"Com efeito nos convinha um sumo sacerdote, assim como este, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, e feito mais alto do que o céus." (Grifo acrescentado.)

3. I S. Pedro 1:19: "Mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo."

4. IS. João 3:5: "Sabeis também que Ele Se manifestou para tirar os pecados, e nEle não existe pecado."

A afirmação de João vai além de dizer que Ele não pecou. Declara que nEle não existe pecado. Se Sua natureza fosse pecaminosa, esta afirmação não lhe caberia.

5. S. Lucas 1:35 nos cientifica de que a impecabilidade de Cristo foi proclamada antes do Seu nascimento - " ...por isso o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus". A expressão 'ente Santo ou ser Santo' jamais poderia ser dita de nossa natureza humana.

6. S. João 8:46 é outra prova da natureza humana não pecaminosa. "Quem dentre vós Me convence de pecado?"

7. S. João 14:30: "Já não falarei muito convosco, porque aí vem o príncipe do mundo; ele nada tem em Mim." Satanás não tinha nada em Jesus, porque Sua natureza humana não era pecaminosa.

8. Hebreus 9:14: "Muito mais o sangue de Cristo que, pelo espírito eterno, a Si mesmo Se ofereceu sem mácula a Deus... "

No Espírito de Profecia: A pena inspirada de Ellen G. White seguiu a mesma direção dos escritores bíblicos quanto à natureza humana não pecaminosa de Cristo. Várias citações evidenciam este fato, como por exemplo:

"Sede cuidadosos, excessivamente cuidadosos ao vos demorardes sobre a natureza humana de Cristo. Não O apresenteis diante do povo como homem com propensão para o pecado. Ele é o segundo Adão. O primeiro Adão foi criado puro, ser não pecaminoso, sem uma mancha de pecado sobre si; tinha a imagem de Deus e podia cair, e o fez por meio da transgressão. Pelo pecado sua posteridade nasceu com a inerente propensão da desobediência. Jesus Cristo, porém, era o Filho unigênito de Deus. Tomou sobre Si a natureza humana e foi tentado em todos os pontos em que a criatura humana o é. Ele podia ter pecado; podia ter caído, mas nem por um momento houve nEle qualquer propensão para o mal."

"Nunca, de maneira nenhuma, deixeis a mais leve impressão sobre as mentes humanas de que pairasse sobre Cristo corrupção, mancha ou inclinação para o pecado.” (10)

"Ele tomou a forma humana, porém não a natureza pecaminosa."

"Ao identificar-Se com nossas necessidades, nossas fraquezas e nossos sentimentos... foi um poderoso intercessor, não possuindo

as paixões de nossa natureza humana caída.” (12)

"Não devemos ter dúvidas quanto à perfeita impecabilidade da natureza humana de Cristo.” (13)

"Ele tomou sobre Sua natureza sem pecado nossa natureza pecaminosa.” (14)

"Tivesse Ele uma nódoa de pecado, e não podia ser o Salvador

da Humanidade.” (15)

É inegável a existência de citações de Ellen G. White que favorecem a outra posição. A mais citada encontra-se no Comentário Adventista, vol. 4, pág. 1147: Jesus Se apropriou da "natureza sofredora humana caída, degradada e corrompida pelo pecado." À luz, porém, do contexto amplo dos seus escritos, e das Escrituras Sagradas, tais citações se referem, sem dúvida alguma, à natureza física de Cristo; não à natureza moral.

Outras comprovações: "Tivesse Jesus vindo ao mundo com uma mancha de pecado, com inclinações e propensões para o mal. e teria estado como todos os filhos de Adão (ver Rom. 5:12) debaixo da condenação da morte devido a Sua situação deplorável, e, portanto, necessitado de expiação.” (16)

"O Filho de Deus assumiu nossa natureza humana sem pecado, de modo que Ele era em tudo igual a nós, exceto no pecado.” (17)

"Este aspecto da natureza humana pecaminosa, embora presente na posteridade de Adão, não estava presente na natureza humana de Cristo.” (18)

"Ele [Cristo] devia tomar Sua posição de cabeça da humanidade, tomando a natureza, mas não a pecaminosa idade do homem.” (19)

"Ele [Cristo] estava isento de paixões hereditárias e das contaminações que corrompem os descendentes naturais de Adão.” (20)

A maioria dos teólogos adventistas e protestantes defende que a natureza humana de Cristo não era pecaminosa. As citações apresentada exemplificam este fato.

Conclusão: "Uma vez que o pecado em sua raiz é um princípio ou estado, a natureza pecaminosa tornaria Cristo um ser pecador e Ele próprio em necessidade de um Salvador.” (21)

A crença de que a natureza humana de Cristo era pecaminosa, opõe-se à Bíblia, foi condenada pela Igreja Primitiva, rejeitada pêlos reformadores e contraria explícitas declarações do Espírito de Profecia.

A natureza humana de Cristo era exatamente igual a nossa: imperfeita e corrompida, no aspecto físico. No aspecto moral, todavia, era santa. Ele foi o segundo Adão, e Seu próprio desejo deve silenciar-nos de uma vez: "Quem dentre vós Me convence de pecado?" (João 8:46).

Referências:



1. A Pessoa de Cristo, pág. 13. Philip Schaff.

2. Mensagens Escolhidas. Livro I, pág. 244.

3. Carta n° 8 de Ellen G. White ao Pastor W. L. H. Baker.

4. Signs of the Times, 1005-1899. Ellen G. White.

5. Veja Cristologia, pág. 101, de Raoul Dederen.

6. Idem, pág. 108.

7. Letters to the Churches, n° l, pág. 5.

8. O Ministério Adventista, setembro/outubro de 1962, pág.10.

9. Cristologia, pág. 56, Raoul Dederen.

10. Citação do SDA Bible Commentary, vol. 5, pág. 1128.

11. Signs of the Times, 29-05-1901. Citado em Questions on Doctrine, pág. 55.

12. Testimonies, vol. II, pág. 508.

13. Mensagens Escolhidas, Livro I, pág. 300.

14. Medicina e Salvação, pág. 181.

15. The Youth's Instructor, 21-09-1899.

16. Artigo de A. V. Olson em O Ministério Adventista, setembro-outubro de 1962, pág. 10.

17. Fórmula de Concórdia, pás. 239.

18. Cristologia. pág. 125, Raoul Dederen.

19. SDA Bible Commentary, vol. 7, pág. 925.

20. Seventh-day Adventist Answer Questions on Doctrine, pág. 383.

21. Lição da Escola Sabatina, pág. 42, Edição do Professor, Primeiro Trimestre de 1983.

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