10 de dezembro de 2008

O conceito de LOGOS no período pré-evangélico

Ruben Aguilar

Ao descortinar a exposição literária sobre o ministério do Mestre, o apóstolo João inicia sua narrativa evangélica com a assertiva de que "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (João 1:1). O vocábulo português Verbo é uma derivação do termo latino Verbum usado por Jerônimo na edição da Bíblia Latina, denominada Vulgata. Esse termo, por sua vez, é uma interpretação do original grego fogos, usado por João para se referir ao princípio fundamental de toda existência — Deus.

Muitos críticos do quarto evangelho procuraram minorar a sua originalidade e a revelação contida nesse texto, asseverando que o apóstolo João notadamente usou o termo Logos influenciado pelo conceito filosófico-religioso do primeiro século, denominado Gnosticismo. Esse movimento, posteriormente declarado herético, aceitava a dualidade entre o bem e o mal; entre o espiritual e o material num sentido de extrema separação. Deus, como Ser espiritual, não poderia ter criado o mundo material; e nessa seqüência de pensamentos os gnósticos rejeitavam a idéia da encarnação de Jesus.

É oportuno confirmar que, além da perseguição dos cristãos pela alienação dos césares romanos e a falsa piedade tradicionalista dos judeus, o maior obstáculo à disseminação do cristianismo genuíno, nos seus alvores, foi a falsidade do Gnosticismo.(1) Certamente João aspirava a que sua mensagem evangélica chegasse não somente a um reduzido grupo de judeus sequiosos de uma reforma espiritual, mas, sobretudo, a pessoas que emergiam da cultura helênica, e a uma variada gama de homens de diferentes etnias que usavam o grego como meio de comunicação, (2) e em cujas mentes vagava uma tênue interpretação de Logos, ao menos, do seu significado.

Destarte, João estava longe de ser influenciado pelo traumatismo intelectual cognominado Gnosticismo. Sua atitude era atingir a mente da vasta sociedade helenista do seu tempo, induzindo a desconhecida realidade de Jesus usando o amplamente conhecido conceito de Logos, da mesma maneira como Paulo introduziu a essência do Deus criador para atenienses através do conceito do "deus desconhecido" (Atos 17:18-34).

O vocábulo Logos é traduzido na linguagem bíblica em diversas acepções, mas o sentido joanino do termo em João 1:1 é a "Palavra de Deus encarnada". Isto é admissível através da análise dos diversos contextos do próprio evangelho, e duma maneira geral do conceito de Logos no pensamento grego, judaico e oriental.

Logos no Pensamento Grego

Originalmente, o termo Logos tem o significado de "Palavra" ou expressão fonética que dá significação aos conceitos ou coisas. O surgimento do pensamento filosófico outorga a esse vocábulo um sentido mais profundo e fundamental relacionado com a origem das coisas.

No século VI AC, Heráclito, nascido na populosa cidade de Éfeso, ensinava que todas as coisas mudam e por esse fato a existência é breve e transitória. O principio de todas as coisas é então o "devir", a mudança, que Heráclito identificou com o termo Logos. Mais ainda, Heráclito tornou explícito que Logos é uma "energia criadora"; que a "sabedoria" dos homens deriva dela; Logos é "sempre existente"; e que todas as coisas acontecem sob seu domínio. (3) O cosmos para Heráclito está regido por uma lei intemporal, o Logos, que representa tudo o que é "geral e absoluto" no Universo, "imortal e indestrutível". (4)

Na segunda metade do século V AC, surge em Atenas um dos maiores pensadores da cultura helênica, Sócrates, a quem Platão sempre chamou de Mestre. Sócrates se preocupava em descobrir o "ser" ou a "razão da existência" das coisas. Sócrates perguntava-se "qual a razão da existência da justiça"; "qual a razão ou o ser da valentia", e assim de todas as virtudes morais. Sócrates designa essa "razão de existência" com o vocábulo Logos, que no sentido técnico filosófico aponta à fonte originadora de toda virtude, pois para ele o interesse fundamental é a Moral. (5)

Posteriormente, Platão amplia o uso de Logos procurando aplicá-lo num sentido vasto e geral, ou seja, descobrir qual a "razão da existência ou o ser" de todas as coisas do Universo. Platão une ao mesmo tempo a idéia de Logos com a idéia do "ser" único e eterno. (6)

No início do século III AC, aparece Zenon de Citium ensinando filosofia no pórtico (stóa) de Atenas, pelo que os seus seguidores são chamados de Estóicos. Para o Estoicismo, o Universo é matéria animada por uma "força" imanente que origina, sustenta e dirige tudo. Essa "força" suprema é o Logos. (7)

Os estóicos falam também da identidade da razão humana com a razão do mundo, que seria o principio imanente ou a "divina razão", identificado como sendo o Logos espermátikos,(8) e que também determina o modo de ser das coisas.

No Pensamento Judaico

Simultaneamente com o raiar da Era Cristã, veio à luz o pensamento filosófico de Philo Judeus. Nascido em Alexandria, como fruto de uma miscigenação greco-judaica, Philo tenta conciliar o clamor da verdade

judaica com os conceitos gregos, sem esconder sua profunda inclinação pêlos preceitos e normas de Moisés. Na obra Sobre a Criação do Mundo e Interpretação Alegórica do Gênesis, Philo expõe sua crença em Deus como um ser que contém toda perfeição e que preserva todas as coisas, além de ser ininteligível por parte do homem. Philo acredita que Deus Se tornou parcialmente inteligível ao homem por via do Logos, que também é designado como sendo o "Primogênito de Deus", o mais elevado "arcanjo", e o "sumo sacerdote". Philo afirma também que esse Logos é a "Palavra" criadora de Deus, pela qual todas as coisas foram formadas. (9)

Philo usou o termo Logos refletindo o pensamento circunstancial de sua época, mas certamente era uma interpretação do pensamento judaico sobre a "Palavra", que na língua hebraica é Dâbâr. L. Durr (1938) demonstrou que o conceito de Logos, ou a "Palavra", não é originário da cultura helênica, mas sim de uma expressão cultural anterior, sustentando esta tese com textos sumerianos e cananitas, onde a "voz divina" é representada pelo poderoso som do trovão. (10) Mais tarde, a literatura israelita não-canônica faz referências à "Palavra" de Deus em expressões virtualmente hipostáticas como o texto em Dêutero-Isaías 40:8: "Mas a Palavra do nosso Deus existirá por sempre"; e em Sabedoria de Salomão 18:15: "A Tua Todo-poderosa Palavra derrama dos céus... destruição."

Lingüisticamente o vocábulo Dâbâr é o equivalente hebraico do termo grego Logos. Mas o significado de Dâbâr é tanto a "Palavra" como também "acontecimento". Assim, Josué fala todas as palavras (Dâbâr) que Deus tem pronunciado (Jos. 23:14 e15). Mas o sacrifício de Isaque é introduzido com a frase "Depois desses acontecimentos..." (Debárim, plural de Dâbâr em Gên. 22:1). No Antigo Testamento as palavras pronunciadas por uma pessoa não se distinguem da própria pessoa que as pronuncia. As palavras são a manifestação do seu próprio eu, de tal maneira que um ser está presente nas palavras que expressa. A Bíblia usa o termo Dâbâr em relação a Deus numa referência a Sua própria manifestação, ou seja, a Sua encarnação." Esse conceito sobre a "Palavra" de Deus outorga-Lhe força, poder e veracidade nos Escritos Sagrados.

No Pensamento Oriental

Apesar da barreira da distância, o pensamento oriental, principalmente da Índia, sempre teve no passado feixes de contato com o pensamento palestiniano e ocidental. Uma evidência desses relacionamentos são os documentos encontrados em 1907 nas ruínas da capital do lendário Império Hitita, que hoje recebe o nome de Boghazkoy, no norte da Palestina, na região conhecida no passado como Anatólia. Esses documentos revelam, entre outros assuntos, a influência da religião da Índia sobre os impérios do Oriente Próximo, o que levou alguns historiadores a tecer referências tais como: os deuses Indo-Iranianos de Mitani (antigo império ao norte da Palestina).

Através dessas evidências e outras tantas é possível asseverar que o trânsito frequente de mercadores, guerreiros, etc., entre essas distanciadas regiões, permitiu a translocação de ideias filosóficas e religiosas. Não é de duvidar que, na época do apóstolo João, estivessem presentes entre seus ouvintes muitos indivíduos provenientes da longínqua Índia. O que interessa para o presente artigo, todavia, é que nos escritos sagrados da Índia existem referências de uma divindade identificada como Vac ou "Palavra". Vac é um termo análogo ao grego Logos e ao hebraico Dobar, e possivelmente aninhado na mente de alguns dos ouvintes de João.

O historiador francês George Dumézil analisa entre os escritos sagrados da Índia, denominados Vedas, o hino classificado com a referência Rg Veda 10, 125, onde se menciona a divindade Vac. Esse ente sagrado é, na realidade, a "Palavra" divinizada e o fundamento do Universo. (11) O hino referido descreve a "Palavra" como uma deusa cujos poderes podem ser descritos brevemente sobre quatro pontos: l. Seu domínio sobre os outros deuses; 2. Sua natureza espiritual resumida em três qualidades — soberania universal, propriedade de todos os bens e inteligência suprema; 3. Sua paternidade por satisfazer as três principais necessidades humanas; 4. Seu papel cósmico. (13).

Outro hino sagrado onde se faz referência a Vac é o classificado com o registro RS: 7.86.1 onde a "Palavra" afirma ter gerado o Pai, como a cabeça deste mundo. (14). E a estrofe RS: 1.164.45 declara que a "Palavra" é um Ser Sagrado dividido em quatro partes, das quais três são segredos divinos e unicamente a quarta é revelada ao homem. (15).

Das referências anteriores, infere-se que o ambiente filosófico religioso do período pré-evangélico estava carregado com a ideia de Logos, ou seu equivalente em outras línguas. Esse termo em diversas expressões apontava um ser de características divinas, embora sua identificação ficasse por conta unicamente da imperfeita percepção da mente humana. Por extremado que fosse o esforço humano, não alcançaria a compreensão plena dos atributos divinos do Logos. Era necessária uma revelação que emanasse do verdadeiro Deus e tornasse límpida e fulgente Sua conceituação. A revelação desta verdade veio através de João, que transmite em expressões simples, desprovidas de metáforas, que o Logos é Deus criador, encarnado na pessoa de Jesus, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus.

Referências:

1. O SDABC, vol. 5, págs. 893 e 894 aponta essas três tendências como sendo as mais perigosas contra o cristianismo do primeiro século.

2. Montgomery, James Boice, The Gospel of John, An Exposilional Commentary, vol. l, pág. 36; e também Morris, Leon, Commentary on the Gospel of John, pág. 116.

3. Adam, James, The Religious Teachers of Greece, Edimburgh 1909, pág. 217.

4. Thomson, George, The First Philosophers, vol. 2, Laurence and Wishort Ltd. England 1974, pág. 134.

5. Garcia Morente, Manuel. Lecciones Preliminares de Filosofia, Edil. Diana S. A. México, págs. 88 e 89.

6. Ibidem, pág. 89.

7. Avey, Albert E. Handhook in lhe Historv of Philosophy, 2nd. Ed. Barnes & Noble Inc. N. Y., pág. 41.

8. Tredici, Jacinto. Breve Corso di Storia della Filosofia, Edizioni Cardinal Ferrari, Roma, pág. 61.

9. Avey. Op. Cif., págs. 48 e 49.

10. Citado por AIbright, William F., From the Stone Age to Christianity, The John Hpking Press, pág. 371

11. Pidoux, Georges. El Hombre en el Antiguo Testamento, Ediciones Carlos Lohlé, Bs. As., págs. 55 e 56.

12. Dumézil, Georges. Les Dieux Souverains dês Indo-Européens, Edilions Gailimard, Paris, pág. 27.

13. Ibidem, págs. 29 a 32.

14. Varenne, Jean. Mythes et Legendes Extraits dês Brahmana, pág. 63.

15. Ibidem. pág. 38.

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