Siegfried Julio Schwantes
Sinopse editorial: A tradução literal da expressão cronológica de Daniel 8:14 rezaria assim: "E ele me disse: ate tarde ('ereb) manhã (bóqer) dois mil e trezentos, então . . ."
Os eruditos modernos comumente usam esta frase das 2300 Tardes-manhãs como referência ao TÁMID ("regular, continuo") sacrifício da tarde e da manhã que era oferecido diariamente como sacrifício regular por todo o Israel. Pressupõe-se que o texto se refere a 2300 sacrifícios regulares. Uma vez que dois destes sacrifícios eram oferecidos a cada dia, a cifra é reduzida à metade a fim de se obter aquilo que se imagina ser a extensão de tempo envolvida, ou seja, 1150 dias.
Desta forma, a conhecida versão "Good News Bible" (TEV), publicada pela Sociedade Bíblica Americana, interpreta a passagem da seguinte maneira. "Ouvi o outro anjo responder: 'Isto continuará durante 1.150 dias, durante os quais os sacrifícios da tarde e da manha não serão oferecidos.’" (A interpretação reflete a tentativa popular de tentar harmonizar as declarações de Daniel com o modelo de Antíoco IV e o período de dessecração do templo, ocorrida entre 167 e 164 A. C.). O autor deste capitulo nega a validade de semelhante interpretação do numero 2300 em Daniel 8:14 e apresenta as seguintes observações:
1. Em primeiro lugar, não esta comprovada a suposição de que a expressão 2300 tardes e manhãs se refere ao sacrifício támid. Esse termo não aparece no texto. Assim, é necessário supor que "tarde-manhã" se refira a támid.
A palavra hebraica támid efetivamente aparece com bastante regularidade em conexão com o ritual do santuário. Ela é amplamente utilizada como advérbio ("continuamente" ou "diariamente") e como adjetivo ("continuo , perpetuo"). Seu uso como substantivo aparece somente no livro de Daniel, onde aparentemente esta em relação com todas as facetas regulares das atividades do primeiro .compartimento do santuário.
2. Os eruditos modernos pressupõem adicionalmente que o termo támid pode ser entendido como aplicando-se a cada um dos dois sacrifícios diários públicos. Mas esta suposição é claramente negada pelas evidencias bíblicas. Quando o termo é aplicado aos sacrifícios, descreve o duplo sacrifício como uma unidade. O 'olat támid ("oferta queimada continua") era vista aparentemente como único sacrifício (embora apresentado em dois segmentos). Portanto, mesmo que fosse correio supor que a expressão "tarde-manhã" devesse aplicar- se aos sacrifícios támid, seria incorreto reduzir à metade a cifra de 2300.
3. Dever-se-ia observar que a seqüência na expressão "tarde-manhã" não é a expressão utilizada pelo idioma hebraico ao referir-se ao seu sistema religioso. A ordem segundo a qual alguém falava da unidade támid de ofertas queimadas, era "sacrifícios da manha e da tarde", em que "manha" sempre precedia "tarde".
Efetivamente. a expressão "tarde-manha" é uma frase aplicada a tempo cujas raízes mais naturais se encontram em Gênesis 1, onde a unidade de tempo de um dia é expressa nos mesmos termos e na mesma seqüência de tarde/manha (Gên. 1:5, 8, 13, 17, 23, 31).
Portanto a fraseologia de 2300 tardes e manhãs pode ser mais naturalmente compreendida como abrangendo 2300 dias completos. (Em profecia simbólica, este elemento de tempo deveria ser entendido como 2300 dias simbólicos.)
4. A expressão "tarde-manhã" é escrita no singular. Este fato favorece o ponto de vista de que a expressão representa uma unidade de tempo, qual seja, um dia completo.
5. A Septuaginta, grega, tanto na versão mais antiga quanto na de Teodósio, do livro de Daniel, compreende a expressão como denotando "dias". Ambas inserem a palavra "dia" na passagem e dizem literalmente: "Ate dias de tarde e manhã dois mil e trezentos ..."
A expressão ‘ereb bóqer de Daniel 8:14 e interpretada na 1 literatura corrente como u ma referência aos sacrifícios matinais e vespertinos oferecidos diariamente no Templo. A omissão de 2300 destes sacrifícios corresponderia a 1150 dias, o intervalo de tempo durante o qual os serviços do Templo foram suspensos, em seguida à profanação do mesmo e de seu altar por Antíoco Epífânio. Esta interpretação veio a tornar- se praticamente normativa, de modo que os modernos eruditos raramente reservam algum tempo para examina-la de modo crítico.
Assim, por exemplo, A. Bentzen declara: "2300 tardes-manhãs, ou seja, 1150 dias, e a forma peculiar de indicar o tempo do qual se esta falando, uma vez que o total de sacrifícios-tamid omitidos é fornecido; uma vez que cada manhã e tarde, de cada dia, testemunhava um tamid, a omissão de 2300 destes sacrifícios significa 1150 dias." (1) Bentzen acrescenta a interessante observação de que esta interpretação data retrospectivamente à época de Ephraem Syrus. A mesma explanação é repetida sem qualquer preocupação crítica pela grande maioria dos modernos comentaristas. (2)
Duas observações poderiam ser feitas aqui. Em primeiro lugar, Nenhum destes modernos comentaristas questiona a exatidão ou correção de que támid efetivamente se refira a cada um dos dois sacrifícios diários, o da manhã e o da tarde. Em segundo lugar, a razão proposta por alguns comentaristas para o estranho fato de que "tarde" esteja a preceder "manhã" em Daniel 8:14, não é sustentável à luz do uso bíblico comum.
Ao se examinar a primeira suposição, ou seja, que támid possa referir-se a cada um dos sacrifícios diários tomados separadamente, vale a pena observar que a palavra támid não é empregada como substantivo, exceto no livro de Daniel 8:11, 12, 13; 11:31; 12:11. Em todo o restante do Velho Testamento o termo é muitas vezes utilizado como advérbio, no sentido de "continuamente" ou "diariamente", ou como adjetivo, com o significado de "continuo", "perpetuo", "regular", etc. E empregada 26 vezes numa construção de relação a fim de qualificar nomes, tais como "oferta queimada", "oferta de manjares", "fogo", "pães da proposição", "festa", "compensação", e assim por diante. Uma vez que támid é usado com maior freqüência para qualificar ofertas ou sacrifícios queimados, a palavra " sacrifício" foi suprida por diferentes tradutores a fim de completar o sentido do támid elíptico nos cinco textos de Daniel. A Septuaginta simplesmente traduziu támid como thusia nestas passagens. Uma vez, porém, que a palavra era usada para qualificar outros aspectos do serviço do Templo, alem dos sacrifícios, seria mais oportuno suprir o termo "serviços" em lugar de "sacrifícios" nos mesmos textos. Quando o santuário foi subvertido pelas atividades do "chifre pequeno", não apenas os sacrifícios deixaram de ser oferecidos, como ainda a totalidade dos serviços do Templo cessou. .
Entretanto, ainda que a palavra "sacrifício" devesse ser suprida nos diferentes textos de Daniel em que o termo támid ocorre, dever-se-ia simultaneamente observar que támid um termo
técnico na linguagem do ritual a fim de designar o duplo sacrifício queimado da manhã e da tarde, o qual deveria ser apresentado diariamente. A legislação de Êxodo 29:38-42 é muito precisa. Depois de apresentar uma detalhada prescrição quanto à oferta diária de dois cordeiros de um ano, sem qualquer mácula, o verso 42 resume todas as instruções ao dizer: "Este será o holocausto contínuo por vossas gerações ..." O texto hebraico apresenta o ponto de modo ainda mais claro: "olat támid dórotêkem. É evidente que a dupla oferta da manhã e da Tarde formava Uma unidade, compreendida pela expressão 'ólat támid.
O texto paralelo de Números 28:3-6 indica o mesmo uso técnico do termo: "dois cordeiros de um ano, sem defeito, em continuo holocausto" (verso 3), onde se lê no texto hebraico: "'ólat támid, que provavelmente deva ser corrigido para 'ólat tamid. (3)
As instruções precedentes são resumidas da seguinte forma. (v.6): "E holocausto contínuo . . .", repetindo o termo técnico 'óIat támid. Torna-se claro que na linguagem do culto as ofertas da manhã e da tarde constituíam um só "holocausto contínuo."
Nos versos restantes de Números 28 e no capítulo 29 pode-se ler um resumo de todos os sacrifícios a serem oferecidos ao longo do ano religioso: os que eram apresentados nos sábados (28:9 e 10); os das luas novas (versos 11-15); os dos sete dias de pães asmos, festa que vinha apôs a celebração da Páscoa no dia de Nisã (versos 16-25); os do dia das primícias, ou primeiros frutos (versos 26 a 31); os do primeiro dia do sétimo mês (29:1-6); os do décimo dia do mesmo mês (versos 7-11); e os que diziam respeito aos oito dias da festa dos tabernáculos (versos 12-38).
Em todos os casos os sacrifícios especiais deveriam ser oferecidos "além do holocausto contínuo" (28;9, 15, 23. 31; 29:6, 11, 16, 19, 22, 25, 28, 31, 34 e 38) - ao todo, cerca de catorze vezes.
Sem levar em conta o numero de sacrifícios a serem apresentados em ocasiões de festas, o 'ólat tamid jamais deveria ser suspenso.
A partir do contexto também se torna claro que a expressão'ólat tamid envolve o duplo holocausto da manha e da tarde, sendo a única exceção encontrada em Números 28:23 - "Estas cousas oferecereis, além do holocausto da manha que e o holocausto contínuo."
Estudo cuidadoso desta Ultima passagem indica que provavelmente o manuscrito tenha problemas, e que o copista, depois de escrever 'ólat habboqer, tentou corrigir o erro acrescentando, a ser lê 'ólat hattámid, da formula regular. Esta exceção isolada não inválida a regra de que, neste longo texto, 'o 1at támid significa tecnicamente o duplo holocausto da manhã e da tarde.
Nossa afirmação de que o támid aparece como símbolo do duplo holocausto da manha e da tarde, ã primeira vista parece ser contra ditada pelo texto de Ezequiel 46:14 e 15: "Juntamente com ele/cordeiro de um ano . . . - vide verso 13/ prepararás manhã apôs manhã uma oferta de manjares . . . Assim prepararão o cordeiro, e a oferta de manjares, e o azeite, manha apôs manhã, em holocausto continuo." Esta objeção poderia ser considerada importante se se pudesse observar que as ordenanças do culto apresentadas em Ezequiel, capítulos 45 e 46, pretendiam ser detalhadas e exaustivas - em vez apenas um esboço simples das características essenciais da nova ordem que ele vislumbrava.
John Skinner, G. A. Cooke e Georg Fohrer tomam o texto para indicar que Ezequiel nada sabia a respeito de um holocausto da tarde.(4) O argumento padrão e que no período pré-exílico existia apenas o ‘olah matinal e o minháh vespertino. Supostamente isto é apoiado pelo fato de o rei Acaz haver ordenado ao sacerdote Urias: "Queima no grande altar o holocausto da manhã, como também a oferta de manjares da tarde . . ." (II Reis 16:15).
Por outro lado, alguns eruditos têm entendido as instruções cúlticas de Ezequiel como representando meramente um esboço dos serviços do templo, e não como prescrições detalhadas. Assim, Johannes Pedersen, ao comentar Ezequiel 45:13-17, chama a atenção para a omissão de dois importantes itens na lista de ofertas que deveriam ser feitas, e apresenta a seguinte explanação:
Provavelmente seja em razão de o plano sor incompleto que se justifique não serem aqui mencionados o vinho e os bovinos. Deve ser esta mesma razão a justificativa para que não se mencione a oferta diária, exceto aquela pelo príncipe: um cordeiro como holocausto a cada manhã, junto com produtos agrícolas é azeite . . .Temos abundantes evidências de que o diário sacrifício da tarde foi, efetivamente, preservado em tempos pós-exílicos.(5)
Da mesma forma, W. Zimmerli, em seu comentário recente, expressa a opinião de que a instrução de Ezequiel 46:13-15 e um resumo, antes que uma apresentação completa dos serviços sacrificiais:
Em vista do fato de que no período pré-exílico já eram conhecidos os sacrifícios da manha e da tarde, não e provável que Ezequiel 46:15 signifique uma redução dos serviços plenos. Provavelmente seu editor tenha sido obrigado, pela revisão do verso 13 e seguintes, e pela combinação de ambos os sacrifícios num só, a concentrar tudo no támid matutino e a descrever apenas este támid (6)
Que as prescrições rituais de Ezequiel não são mais que apenas um esboço, torna-se também evidente a partir da referencia à celebração da Páscoa no capitulo 45, verso 21. Esta declaração não pode ser tomada senão como uma fugaz referência ao conhecido ritual, longamente praticado. Diz-se de Josias que ele celebrou a Páscoa com toda a solenidade no décimo-oitavo ano de seu reinado (II Reis 23:21-23). (7) Dever-se-ia conservar em mente que na maioria dos casos Ezequiel não estava inovando, e sim padronizando antigas praticas de acordo com um plano ideal.
Deve-se acrescentar que o texto de II Reis 16:15 tampouco exclui a possibilidade de que um sacrifício queimado vespertino estivesse sendo oferecido. O texto faz referencia ao "holocausto do rei, e a sua oferta de manjares", assim como ao "holocausto de todo o povo da terra, a sua oferta de manjares, e as suas libações." Isso torna evidente que os serviços diários eram compostos por algo mais, mesmo nos dias de Acaz, do que "o holocausto da manhã /e/ a oferta de manjares." Os comentários do profeta Isaías, contemporâneo de Acaz, sobre o cerimonialismo da época, deixa a distinta impressão de que o numero de sacrifícios oferecidos no templo, nesta oportunidade, era imenso (Isa. 1:11-13).(8) Não havia falta de zelo cerimonial, e sim uma clamorosa ausência de moralidade e racionalidade na religião que então se praticava.
Não e possível emiti/r opinião finai sobre a validade do argumento baseado em II Reis 16:15 antes que se defina claramente o termo minháh.
N. H. Snaith expressou a opinião de que, com o passar do tempo, minháh adquiriu o sentido limitado de "oferta de grãos (cereais)", mas que poderia também haver conservado o sentido original de "tributo, presente." Ele argumenta que, "em virtude disto, poderia o termo haver sido utilizado num sentido mais amplo, ou seja, referindo-se a toda a cerimonia." (9) Como exemplo deste sentido mais amplo, Snaith refere-se ao 'olát, ' hamminháh de I Reis 18:29 e 36, evidentemente oferecido à tarde e ao 'olát hamminháh de II Reis 3:20, obviamente oferecido peia manha. Ele prossegue dizendo que "as duas cerimonias mencionadas são o támid de Êxodo 29:38 e seguintes e Números 28:3 e seguintes."
Parece razoável supor que o minháh de II Reis 3:20, oferecido pela manhã, incluía o holocausto padrão. Por outro lado, o minháh a que se refere I Reis 18:29 e 36 certamente inclusa, entre outras coisas, o holocausto oferecido naquela tarde pelo próprio Elias, no topo do Monte Carmelo, Se concede este sentido mais amplo ao minháh de II Reis 16;15, não existe razão para se excluir a possibilidade de que um holocausto vespertino fosse incluído na cerimônia total conhecida como minháh.
Temos suposto - corretamente, cremos - que o termo támid de Daniel 8 significa a cerimonia de duplo holocausto, da manhã e da tarde. Os parágrafos anteriores demonstraram que esta suposição não se invalida através de Ezequiel 46:15, ou pelo texto frequentemente citado de II Reis 16:15. (10)
As evidências providas pêlos textos de Êxodo 29 e Números 28 e 29, que são fundamentais ã discussão do significado do támid deveriam precaver qualquer exegeta imparcial diante da suposição apressada de que o hattámid de Daniel designa cada um dos sacrifícios separadamente, como se os sacrifícios da manha e da tarde fossem duas unidades independentes. O texto de Esdras 3:3-5 é particularmente significativo no contexto da pres.ente discussão. Apôs falar da restauração do altar e da apresentação de "holocaustos ao Senhor, de manhã e ã tarde", o verso 5 resume o diário sacrifício da manhã e da tarde sob a expressão ' olat támid, evidentemente singular.
Mais que isto, dever-se-ia observar que a palavra támid, por si própria, não é encontrada em Daniel 8:14. Simplesmente se assume a sua presença com base nas referencias a ela encontradas nos versos 11 a 13. Mas a suposição de que a fórmula 'ereb bóqer é a equivalente ao hattámid dos versos precedentes, ignora outro fato fundamental da linguagem do culto, ou seja, que na descrição dos sacrifícios diários o termo "manhã" sempre precede o termo "tarde".
0. Plöger, por exemplo, ao comentar Daniel 8:14, segue inúmeros predecessores ao afirmar: "Uma vez que o sacrifício era oferecido à tarde e pela manhã, isto significaria um intervalo de 1150 dias." (11) Dever-se-ia observar, contudo, que a linguagem do ritual sempre designa o sacrifício da manhã antes do da tarde, sem qualquer exceção . A pesquisa do Velho Testamento produz as seguintes ilustrações. Êxodo 29:39; Levíticos 6:13; Números 28:4; II Reis 16: 15; I Crônicas 16:40; 23:30; II Crônicas 2:4; 13:11; 31:3; Esdras 3:3. "Holocaustos da manhã e da tarde" tornou-se uma frase estereotipada, que desconhece exceções na literatura bíblica. Ela também é perpetuada no período pos-bíblico, conforme o exemplo oferecido em I Esdras 5:50, onde temos: "e eles ofereciam sacrifícios segundo o tempo, e holocaustos ao Senhor tanto pela manha quanto à tarde." (12).
A expressão mé'ereb 'ad-boqer e usada em Levíticos 24:3, mas isto ocorre em referência ao tempo em que as lâmpadas deveriam arder no santuário. A razão para a sequência tarde-manhã neste instante particular ë obvia. As lâmpadas deveriam arder durante a noite, e não durante o dia. Comentando as cerimonias diárias do templo, J. B. Segal salienta que "o ritual diário do templo seguia a rotina dia após dia, começando pela manhã e terminado a tardinha." (13)
Alguns estudiosos alegam que a inversão da ordem na expressão 'ereb bóqer de Daniel 8:14 reflete o uso de um novo calendário adotado pêlos israelitas em seu primeiro contato com a civilização babilônica. De acordo com R. de Vaux, por exemplo, a introdução do calendário lunar babilônico provocou uma modificação na antiga forma israelita de contar o dia. (14) Ao passo que antes do exilío a ordem usual havia sido manhã-tarde no período pós-exílico a sequência tarde-manhã veio a ser normal. Demonstrei em outro estudo que o argumento de Vaux, baseado no uso da fórmula "dia e noite", e insustentável a luz da evidência oferecida pela literatura babilônica, (15) De modo geral se reconhece que na Mesopotâmia o dia era contado de tarde a tarde, o que usualmente é o caso quando se observa um calendário lunar. (16) Conseqüentemente, se o argumento de Vaux estivesse correto, seria de esperar que na literatura babilônica a expressão "noite e dia" fosse muito mais comum que sua forma inversa, "dia e noite". Mas um conto metódico no típico de Gilgamés, o protótipo sumeriano do Dilúvio, que é "A Descida de Inana ao Mundo Inferior" e também o Épico da Criação, apresentam preponderância da fórmula "dia e noite", em vez de "noite e dia", mostrando a proporção de 4:1. (17)
A partir desta pesquisa superficial da literatura babilônica torna-se óbvio que não existe correlação entre o tipo de calendário utilizado e o uso da formula "dia e noite" ou seu reverso.
A preferência universal pela modalidade "dia e noite" reflete,
conforme salienta Segal, "o curso ordinário do comportamento humano. E pela manhã que o homem começa o trabalho ativo do dia e, por esta razão, a frase presente na boca humana é "dia e noite'. (18)
Não e de surpreender, pois, que a formula "dia e noite" seja presenciada com muito maior frequência que "noite e dia" na literatura bíblica pré-exílica, independentemente do tipo de calendário usado. Pela mesma razão é ela que prossegue sendo a mais comum nos livros pós-exílicos. Assim, Neemias prossegue pregando "dia e noite" (Neemias 1:6). Em seus dias estabelece-se uma guarda como proteção contra o inimigo "dia e noite" (Neemias 4:9). Siracide, escrevendo na porção iniciai do segundo século A. C., ainda fala de "manhã ate tarde" (Sir. 18:26). Judas Macabeu ordenou ao povo que clamasse ao Senhor "dia e noite" (II Mac. 13:10). Judite é apresentada como servindo ao Deus do Céu (Judite 11:17). A formula estereotipada prossegue sendo usada continuamente até o inicio da era cristã, conforme o demonstra a literatura de Qumran. (19)
A linguagem do Novo Testamento aponta ã mesma direção, ou seja, que o uso da expressão estereotipada "dia e noite", ou sua forma reversa, não guarda relação com a forma de se computar o dia. Assim, em o Novo Testamento a fórmula nuktos kai hémeras ("noite e dia") é usada oito vezes (Atos 20:31; Romanos 13:12; II Cortntios 11:25; I Tessalonicenses 2:9; 3:10; II Tessalonicenses 3:8; I Timóteo 5:5; II Timóteo 1:3), ao passo que a formula reversa hémeras kai nuktos ("dia e noite") é usada dez vezes (Mateus 4:2; 12:40; Lucas 18:7; Atos 9:24; 26:7; Apocalipse 5:8; 7:15; 12:10; 14:11; 20;10). Também em muitas passagens do Talmude a expressão "dia e noite" e empregada, conforme salienta C. H. Borenstein.(20) E mesmo em nossos dias parece ser pequena a correlação entre linguagem e sofisticação astronômica ou do calendário"
A evidência destacada acima demonstra que a expressão 'ereb bóqer de Daniel 8;14 não poderia haver derivado da linguagem do culto, onde a ordem manhã-tarde é o padrão em todas as oportunidades. Tampouco existe evidência de que a formula cúltica "manhã e tarde", aplicada aos sacrifícios, foi modificada durante o cativeiro ou nos períodos subsequentes. Sendo este o caso, a procedência da expressão 'ereb bóqer deve ser buscada em outra parte, que não a linguagem do culto, É inadmissível que um escritor tão familiarizado com a jargão do culto, conforme o foi o autor do livro de Daniel, pudesse cometer um erro tão grosseiro.
O argumento do presente autor e que a pouco usual expressão 'ereb bóqer de Daniel 8:14 deve ser buscada na lapidar linguagem de Génesis 1. Ali a expressão padronizada way hì-'ereb way hì-bóqer ("e foi a tarde e a manhã") e usada para cada dia da narrativa da criação (Gên. 1:5, 8, 13, 19, 23, 31). R. de Vaux está certo ao chamar a atenção ao fato de que em Gênesis 1, 'ereb assinala o final do ato criativo realizado durante o dia, e bóqer marca o final da noite de descanso. (21) Parece razoável que ao descrever os dias da criação, o destaque seja dado ã atividade criativa ocorrida durante a parte clara do dia, em vez de sobre a noite de descanso.
Sendo assim as coisas, remanesce o fato de que esta maneira de designar um dia completo não é encontrada em qualquer outra parte do Velho Testamento, exceto em Daniel 8:14. A prática padronizada é designar o dia de 24 horas pela fórmula "dia e noite "ou, com frequência muito menor, "noite e dia". Segue-se que, se o autor de Daniel tomou emprestada a expressão 'ereb bóqer de Gênesis 1, conforme as evidências parecem fartamente indicar, não ê razoável aplicá-la a meios-dias, conforme tantas vezes se faz de modo não crítico, e sim a dias completos.
K. Marti reivindica que a expressão 'ereb bóqer de Daniel 8:14 deve ser entendida de acordo com a expressão paralela de Daniel 8:26, onde a existência da conjunção we entre dois substantivos indica que 'ereb bóqer de 8:14 não deveria ser tomada como uma unidade de 24 horas. (22) A conclusão de Marti está aberta a questionamento, uma vez que o simples fato de que 'ereb bóqer, com ou sem conjunção we, se encontra no singular, representa evidência de que a expressão significa uma unidade de tempo, mais exatamente, um dia completo. Assim a entendeu a Septuaginta de Teodósio ao acrescentar hémerai ao texto. Em todas as demais partes de Daniel os dias, semanas ou anos são contados sempre no plural e aparecem precedendo o numeral. Assim, na porção hebraica do livro nos encontramos sanim ("anos") 3 (1:5); yámim ("dias") 10 (1:12, 14); sábu'im ("semanas") 70, 7, 62(9:24, 25. 26); yámim ( "dias")1290 (12:11); yámim ("dias"); 1335 (12:12). Em contraste, a fórmula 'ereb bóqer aparece no singular, tal como o francês apès-midi, que também é invariável.
O próprio fato de, que a expressão 'ereb bóqer apareça excepcionalmente no singular, em contraste com todas as outras enumerações do livro, favorece o ponto de vista de que ela representa uma unidade de tempo. Se reconhecer também que a expressão 'ereb bóqer não poderia haver sido tomada emprestada da linguagem do culto, mas que com muita probabilidade foi modelada segundo a fraseologia de Gênesis 1, é praticamente inevitável concluir-se que ela está representando um dia completo.
AUSS 16 (outono de 1978): 375-385.
Referências:
1. A. Bentzen, Daniel (Tubingen, 1972), p. 71.
2. J. Montgomery, The Book of Daniel (Edinburgh, 1927), p. 343; Jean Steinmann, Daniel (Pa ri s ,1950), p. 124; N. M. Porteous, Das Danielbuch (Göttingen, 1962), p. 104; 0. Plöger, Das Buch Daniel (Paris , 1965), p. 127; M. Delcor, Le livre de Daniel" (Paris, 1971). p. 177; André Lacocque, L e livre de Daniel (Paris. 1976), p. 49.
3 . Cf. R. Kittel, Bíblia hebraica , 3º adição.
4. John Skinner, The Book of Ezeckiel (Nova Iorque, 1905), pp. 472-73; G. A. Cooke, The Book of Ezechiel (Edinburgh, 1936), p. 511; Georg Fohrer, Ezechiel (Tubingen , 1955) , p. 256
5. J. Pedersen, Israel: It's Life and Culture, 3/4 (Londres, 1940):352.
6. W. Zimmerli, Ezechiel (Neukirchen, 1969), p. 1175.
7. Quanto a origem antiga da Páscoa, veja R. de Vaux, Lês sacrifices de L'Ancien Testament (Paris, 1964), p.22.
8. Cf. As observações de Miquélas, contemporâneo de Isaías, em Miquëias 6:6-8.
9. N. H. Snaith, "Sacrifices in the 0ld Testament", VT 7 (1957), p. 315.
10. Quanto a menção de támïd em Ezequiel 46:14, Zimmerli, a pagina 1168, explica-a como uma intrusão do verso 15.
11. Plöger, página 127. Entretanto, Porteous, à pagina 104, é cuidadoso ao observar a ordem manhã-tarde: "wahrend dieses Zei tabschnittes ware das tamid-Opfer 2300mal am Morgen oder Abend dargebracht worden."
12. APOT, 1:39. De acordo com R. H. Charles, a data de Esdras poderia ser "a época tardia dos gregos." A expressão holokautomata to kurio to proinon kai to deilinon de I Esdras 5:49 na Septuaginta, não contem termos técnicos, conformes sugere Montgomery à pagina 343, mas simplesmente repete os termos já empregados na Septuaginta de Êxodo 29:39.
13. J. B. Segal, "Intercalation and the Hebrew Calendar", VT 7 (1957):254.
14. R. de Vaux, Ancient Israel: Its Life and Institutions (Nova Iorque, 1961 ), p. 181
15. S. J. Schwantes, "Did the Israei1tes Ever Reckon the Day from Morningto Morning? ", The Ministry, Julho de 1977, páginas 36 a 39
16. Veja 0. Neugebauer, The Exact Sciences in Antiquity (Harpér Torchbook, editor; Nova Iorque, 1962).página 106; A. Parker e W. H. Dubberstein, Babilonian Chronology, 626 B.C. (Harpér Torchbook, editor; Nova Iorque, 1962).página 106; A. Parker e W. H. Dubberstein, Babilonian Chronology, 626 B.C. A. D. 45 (Providence, 1956), p. 26 ;"Jack Finegan, Handbook of the Bib1e Chronology (Princeton, NJ, 1964), pagina 8; E. J. Bickermann, Chronology o f the Ancient Horid (Londres, 1968), páginas 13 e 1 4.
17. Quanto à formula "dia e noite", veja o Épico de Gilgamesh, Tablet I. 2.24, 4.21. 5.19 (ANET. pp. 74-75); a versão em babilônio antigo do Tablet II, 2.6 (ANET. p. 77) e X, 2.5, 8 (ANET, pp. 89-90); a versão assíria do Tablet XI, linhas 126 e 199 (ANET, pp. 94-95); o protótipo sumeriano do Diluvio, linha 203 (ANET, p. 44); o mito sumeriano da descida de Inana ao Mundo Inferior, linha 169 (ANET, p. 55); o Épico da Criação, Tablet l, linha 50 (ANET, p. 61). Quanto à formula "noite e dia", veja o Épico da Criação, Tablet I, linha 129, e Tablet III. linhas 19 e 78 (ANET. pp. 62, 64-65).
18. Segal, p. 254.
19. I Qm 14:13; veja J. van der Plöeg, "La rëgie de la guerre: Traduction et notes", VT 5 (1955): 389, 415.
20. Citado por S. Zeitlin, "The Beginning of lhe Jewish Day", JQR 36 (1945-46): 410. Deve-se observar que Zeitlin favorece a hipótese de que os israelitas contavam o dia de manhã a manha nos tempos pré-exílicos.
21. De Vaux, Ancient Israel, p. 181.De Vaux usa a ordem 'erebbóqer como argumento em favor da hipótese de que de tempos pre-exílicos o dia fosse contado de manhã a manhã. G. von Rad Gênesis (Philadelphia, 1961). página 51. esboça a mesma conclusão: "0 dia parece ser aqui contado de manhã a manhã, estranho contraste com sua contagem na 1ei do culto." Dever-se-ia dizer, contudo, que Gênesis 1 não foi escrito com o propósito de reconhecer ou estabelecer qualquer calendário particular ou método de contagem do dia. Para um ponto de vista diferente, veja E. A. Speiser, Gênesis (Garden City, NY, 1964), p. 5.
22. K. Marli, Das Buch Daniel (Tübingen, 1901), p. 60.
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