9 de dezembro de 2008

A medicina na Antiga Babilônia

Siegfried Julio Schwantes

Prof. Leo Oppe­nheim, da Universidade de Chicago, em seu livro A Mesopotâmia Antiga, dedica um interessante capítulo à me­dicina como era praticada na antiga Babilônia. Um tal capítulo não po­deria ser escrito antes das escavações arqueológicas levadas a efeito em di­ferentes pontos da Mesopotâmia no último século. Impelidos pela curio­sidade de melhor conhecer o berço da civilização, dezenas de investigado­res patrocinados por museus e univer­sidades da Europa e dos Estados Uni­dos trabalharam nas ruínas de Níni­ve, de Babilônia, de Nipur, de Ur, para só mencionar algumas das cida­des mais importanteS. Estas escava­ções cada vez mais meticulosas trou­xeram à luz cidades e cemitérios, tem­plos e palácios dos vários povos que se sucederam no palco histórico da Mesopotâmia.

De igual interesse foi a descoberta em arquivos públicos e particulares de milhares de tabletes de argila cober­tos de inscrições, que forneciam toda espécie de informações não só sobre o comércio, práticas religiosas, a vi­da de todos os dias, conquistas mili­tares, correspondência entre vários soberanos, mas também sobre a me­dicina. Fora os poucos textos estrita­mente médicos que consistem de cole­ções de prescrições, é preciso colher fragmentos de informações em cartas, nos códigos de lei, como o código de Hamurabi, e nos textos literários de diferentes épocas.

Os textos médicos de natureza “científica”, se assim podem ser cha­mados, apresentam-se na forma de prognósticos, e são arranjados em co­leções. Cada série começa, em geral, pela fórmula: “Se um homem sofre de uma dor na cabeça (ou outra parte do corpo). . .“ A enumeração dos sin­tomas é bastante detalhada e é segui­da por instruções quanto ao tratamen­to: preparação, tempo a ser observa­do, aplicação, etc. Normalmente a instrução termina com a garantia: “O paciente se restabelecera...” , mas ocasionalmente o médico é advertido de que o paciente não sobreviverá à enfermidade.

Certos textos datam de meados do segundo milênio antes de Cristo, e foram encontrados em Hatusa, a ca­pital do império hitita, onde escribas fizeram cópias dos textos originais babilônicos. Outros documentos fo­ram encontrados em Assur e Nínive, e datam de 1000 a 612 A.C., quan­do o império assírio chegou a seu fim. É evidente ao investigador que todos os documentos, não importa a data, refletem a prática médica e o estado de conhecimento médico no tempo da antiga Babilônia, a única época verdadeiramente criativa neste domí­nio. As gerações seguintes se conten­taram em preservar a tradição, quando não introduziram, o que é pior, noções supersticiosas que degradam a medi­cina ao nível da magia ou feitiçaria.

A título de comparação, pode-se dizer que a medicina na Mesopotâ­mia não ultrapassou jamais o estado da medicina popular corrente na Eu­ropa na Idade Média, por exemplo. Os medicamentos consistiam sobre­tudo de ervas nativas de toda espécie, de produtos animais tais como gor­dura, sebo, sangue, leite, osso, e um pequeno número de substâncias mi­nerais. As ervas — raízes, hastes, fo­lhas, frutos, segundo o caso — eram empregadas secas ou frescas, pulveri­zadas, molhadas ou fervidas. Eram misturadas com cerveja, vinagre, mel e sebo, como excipiente, substância neutra que leva o princípio ativo. Certos medicamentos deviam ser engolidos, ou aplicados sobre o corpo como loções ou pomadas. Como se pode imaginar, algumas ervas eram empregadas como laxativos, diuréti­cos ou expectorantes. As vezes o em­prego mostra que as qualidades e os efeitos destas ervas eram bem conhe­cidos. Em outros casos a superstição desempenhava um papel importante.



Instrumentos médicos são rara­mente mencionados nestes textos. Po­de-se ler no entanto de espátulas e tu­bos, bem como de bisturi, que é cha­mado “faca de barbeiro”. É interes­sante notar que em muitas culturas a profissão médica era exercida por barbeiros, sem nenhuma instrução preliminar. O bisturi era usado para escarificar a pele com o fim de pro­vocar uma sangria. Sua finalidade seria semelhante ao emprego de ven­tosas e sangue-sugas por médicos de uma época não muito distante da nossa.

Considerando a natureza elemen­tar destes conhecimentos médicos, não é de admirar que não se recorresse a cirurgia, salvo em situações extremas. Práticas mágico-médicas, tais como a extração de dentes ou a trepanação, não são atestadas em Babilônia. Mas a trepanação era praticada na Palesti­na antiga, como atestam crânios en­contrados por J. L. Starkey numa fos­sa nas ruínas de Lakis, bem como en­tre os Incas do Peru. Os numerosos exemplos da trepanação constados aqui e acolá se explicam pelo uso da maça nos combates com o resulta­do de muitos combatentes tombarem com crânios fraturados. Era preciso fazer algo para salvá-los da morte certa, e o remédio heróico era a tre­panação. A prova de que alguns fe­ridos sobreviviam a esta operação de­licada, é que a janela retangular aber­ta no crânio com o auxílio de uma serra, mostra, em vários casos, sinais de cicatrização. Se os ângulos da ja­nela são ainda nítidos nos crânios operados, é sinal que o paciente deve ter morrido logo ~pois da trepana­ção.

Não é verdade, afirma o Dr. Leo Oppenheim, que se praticavam operações de catarata em Babilônia. A referência à intervenção no globo ocular feita no Código de Hamurabi deve ser compreendida como uma sim­ples escarnificação com o fim de ali­viar alguma enfermidade dos olhos. Exigia muita coragem ser cirurgião no tempo de Hamurabi (1728-1686 A. C.), pois o célebre código que leva seu nome prescreve que o cirurgião que provocasse a perda do olho de um membro da aristocracia teria sua mão amputada.

O que é lamentável é que a medi­cina na Mesopotâmia permaneceu no mesmo baixo nível de desenvolvimen­to através dos séculos. Pode-se mesmo dizer que ela se degradou progressiva-mente pela contaminação de certos conhecimentos médicos válidos ad­quiridos pelos antigos com noções su­persticiosas. A medicina degenerou-­se em feitiçaria com grave prejuízo para todos. O historiador grego He­ródoto, que visitou Babilônia cerca de 450 A.C., consigna que os babi­lônios tinham o hábito de trazer seus doentes ao mercado a fim de perguntar aos transeuntes que remédios pode­riam sugerir. Se bem que esta observa­ção de Heródoto tenha sido contes­tada pelos assiriólogos, é indiscutível que o visitante grego não mostra a mesma admiração pela medicina e os médicos de Babilônia que ele mostra pelos do Egito.

O alto prestígio que Heródoto atri­bui à medicina praticada no Egito e justificada pela excelente qualidade das observações médicas contidas no papiro Edwin Smith, que data do Antigo Império, ou pelo grau de es­pecialização na prática médica que Heródoto tanto admirou, ou pela rica farmacopéia de que fala o autor da Odisséia (IV, 229, 231). Infelizmen­te, o estudante imparcial deve pronun­ciar o mesmo juízo sobre a medicina egípcia que sobre a babilônica. Come­çando num nível admirável em que as observações e prescrições médicas são feitas com bastante objetividade e lucidez, esta medicina se degene­rou irremediavelmente pelo efeito de­letério da magia e da feitiçaria. O conceito expresso pelos egiptólogos alemães Ermann e Ranke com respei­to à religião egípcia se aplica igual­mente à medicina. Ambas sofreram a ação devastadora da magia que re­duziu urna e outra a superstições gros­seiras.

De outro lado, a opinião do Prof. Leo Oppenheim quanto à causa do prestígio da medicina no Egito antigo e seu relativo desprestígio em Babilônia, não parece resistir a um exa­me cuidadoso. Oppenheim atribui o prestigio ao fato de que os egípcios criam numa vida eterna, e esta cren­ça os levava a combater a enfermi­dade e a morte pela competência mé­dica elevada ao mais alto grau. Em contraste, o desinteresse dos povos da Mesopotâmia pela vida no além os inclinaria também a se desinteres­sarem pela preservação da vida pre­sente. O ilustre professor chega a di­zer que a resignação em face da mor­te no Antigo Testamento explicaria de igual modo a falta de interesse na medicina em Israel. E neste con­texto que Oppenheim cita II Crônicas 16:12: “Caiu Asa doente dos pés; a sua doença era em extremo grave, contudo na sua enfermidade não recor­reu ao Senhor, mas confiou nos mé­dicos.”

Não se pode, entretanto, concluir deste verso que os escritores bíbli­cos fossem em principio hostis à me­dicina. Asa é condenado não neces­sariamente por consultar os médicos, mas por não buscar ao Senhor. A crença religiosa em Israel era perfei­tamente compatível com o uso de re­cursos médicos. A aversão às práticas médicas correntes na época do rei Asa se explica pelo fato de que a me­dicina de então era de tal modo mis­turada com a feitiçaria e a supersti­ção que nenhum israelita podia em boa consciência buscar seu socorro. O ‘médico” de então não passava de um curandeiro, ou encantador co­mo é o caso ainda hoje em muitas culturas primitivas.



É natural que quando seis ou sete séculos mais tarde a medicina se ti­nha desembaraçado da magia e havia atingido um nível mais “científico”, com as devidas reservas, os israelitas podiam considerá-la com mais respei­to. E esta a situação que se reflete no livro apócrifo de Ben Sirach, es­crito cerca de 200 A.C.:



“Honra o médico com a honra que lhe é devida,..

“pois Deus também o criou;

“pois a cura vem do Altíssimo.”

(Ben Sirach, cap. 38:2 e 4)

O uso da palavra rophé. “médico”,

é rara no Antigo Testamento. Encon­tra-se uma só vez no singular em Je­remias 8:22: “Acaso não há bálsamo em Gileade? ou não há lá médico?” No plural a palavra é encontrada em Gênesis 50:2 duas vezes, onde parece ser sinônimo de “embalsamador”. Uma outra referência se encontra em Jó 13:4, onde Jó acusa seus amigos de serem “médicos que não valem nada”, pois não lhe traziam nenhum conforto. Este verso pressupõe a exis­tência de bons médicos, que contras­tavam com a qualidade dos amigos de Já. Em todo o caso, o país em que Já habitava não era a Palestina.

O que é certo é que no tempo de Ben Sirach o Oriente Próximo experi­mentava a influência esclarecida da cultura grega. O novo clima intelec­tual foi um dos resultados das conquis­tas de Alexandre o Grande (366-323), cujo sonho fora amalgamar o Oriente e o Ocidente numa forma superior de civilização. Um dos gestos mais duradouros do jovem conquistador foi a fundação da cidade de Alexandria no Egito, que suplantou dentro em pouco Atenas como o maior centro cultural da época. Em Alexandria o impulso científico de Hipócrates, o pai da medicina, e de Aristóteles, o fun­dador da história natural, haveria de conhecer sua mais bela floração. Uma verdadeira plêiade de sábios como Erastóstenes e Arquimedes conferiu ao centro de estudos que era o museu de Alexandria uma glória imperecível.

Convenha-se que noções médicas mais objetivas, no estilo dos aforis­mos de Hipócrates, tomaram-se pou­co a pouco o patrimônio de muitos homens cultos que exerciam a profis­são médica. A Palestina, que ocupa­va uma posição chave entre o Egito e a Babilônia e a Síria (dois focos da cultura gre­ga), não podia deixar de ser benefi­ciada pelo clima mais científico que prevalecia neste mundo helenístico nascido das conquistas de Alexandre. Como resultado, o sábio Ben Sirach deve ter conhecido na Palestina de seus dias, médicos cuja competência pro­fissional impunha respeito. Daí suas palavras elogiosas impensáveis na época do rei Asa: “Honra o médico com a honra que lhe é devida..

O apóstolo Paulo, cuja cidade natal foi Tarso, um centro universi­tário, e que passou anos em Antio­quia, a cidade mais culta do Oriente Próximo em seus dias, do mesmo mo­do em que Ben Sirach tinha os me­dícos em alto preço, ele que afirma­ra, sob a inspiração divina, que nosso corpo é o “santuário do Espírito San­to”, e que nos incumbe glorificar a Deus “no vosso corpo” (1 Cor. 6:19 e 20), sabia quão importante é a preservação da saúde. É compre­ensível, pois, que o apóstolo Paulo, que em suas viagens missionárias desfrutara a companhia de Lucas “o médico amado” (Col. 4:14), nutrisse por este seu colega a mais alta estima.

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