10 de dezembro de 2008

Análise de Jó 19:25 "eu sei que meu redentor vive"

Dr. Aristarcho Pinheiro Mattos

Respondendo a seus amigos, Jó dizia: “Porque eu sei que o meu Redentor vive, e por fim Se levantará sobre a Terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne ve­rei a Deus. Vê-Lo-ei por mim mesmo, os meus olhos O verão, e não outros.” Jó 19:25-27.

Como podem ser entendidas es­tas palavras? Qual, realmente, de­ve ser a aplicação primária destas declarações? Estaria Jó pensando em uma vida além-túmulo, por meio da ressurreição, ou será que ele esperava por alguém, que o socorresse, fazendo sua defesa, já em seus dias?

Na verdade, o texto de Jó, acima referido, é um dos mais difíceis de todo o Antigo Testamento. Muitos são os intérpretes que, perplexos, tentam achar caminho por entre estas palavras do texto sagrado. Já dizia o Prof. Meek que são tantas e variadas as interpretações dadas ao texto, que dificilmente seriam encontrados dois intérpretes que estivessem de acordo entre si, diante destas palavras de Jó. (1)

Clemente de Roma (I século de nossa era), foi o primeiro, dentre os escritores pós-apostólicos, a co­locar esta aludida passagem de Jó no contexto da ressurreição, (2) no que foi seguido por Orígenes. (3) De fato, o pensar em Jó 19:25-27 co­mo uma referência à ressurreição, é também uma constante desde os dias de Agostinho, cobrindo toda a Idade Média, até os dias da Reforma Protestante. (4)

“Porque eu sei que o meu Redentor vive.” Ao se buscar o texto original, observa-se que a palavra Redentor é tradução do vocábulo hebraico go’el. E uma pergunta se impõe: Para o semita, o que vem a significar a palavra go’el?

Esse termo hebraico é de uso exclusivo entre as línguas semíticas, tendo passado a ser hebraísmo a partir do Antigo Testamento, para línguas próximas. (5) Ocorre no texto hebraico cerca de 121 vezes. (6)

Em Israel o termo go’el fazia referência àquele parente mais chegado de uma pessoa, que conseqüentemente podia ser, não só ir­mão, tio, primo, mas um outro consangüíneo, “obrigado a defender esta pessoa e proteger seus direitos”. (7) Havia certas regras de conduta que se esperava fossem seguidas pelo go’el, em relação a um seu parente desvalido. De fato, no Antigo Testamento, a expressão go’el hadam é traduzida para vingador do sangue, como por exemplo, nestas passagens: Números 35:19 e seguintes, e Deuteronômio 19:6 e 12.

No livro de Rute, o termo go’el (com suas derivações gramaticais) aparece 23 vezes. Em forma substantiva, na sua maioria faz referência ao parente próximo de Noemi anônimo, o “remidor”, ou a Boaz. Aquele homem devia, de acordo com suas obrigações, resgatar a propriedade que fora de Elimeleque, o qual muito seguramente de­via ter tido algum problema, por causa de insolvência econômica (Lev. 25:24).

Cabia também ao remidor (go’el) a obrigação de casar-se com a viúva de seu parente, caso este não tivesse descendente, a fim de que seu nome não perecesse (Deut. 25:5). De acordo com o relato do livro de Rute, é sabido que o “pa­rente próximo” estava disposto a resgatar a propriedade, mas não queria casar-se com Rute (8), que no caso representava Noemi (Rute 4:1-6), deixando estas responsabilidades a cargo de Boaz (vs. 6-10).

Observa-se que, no transcorrer do tempo, dentro da mentalidade hebraica, paulatinamente todas es­tas obrigações redentoras foram transferidas do “parente próximo” para o rei, que como o Grande Go‘el do povo, devia salvar o pobre e oprimido, da mão do opressor. Falando do rei, assim escreve o salmista: “Porque Ele acode ao necessitado que clama, e também ao aflito e ao desvalido. Ele tem piedade do fraco e do necessitado, e salva a alma aos indigentes. Redime as suas almas da opressão e da violência, e precioso Lhe é o sangue deles.” (Sal. 72:12-14.) Ainda no livro de Provérbios há esta admoestação: “Não removas os mar­cos antigos, nem entres nos campos dos órfãos, porque o seu Vingador (Go’el) é forte, e lhes pleiteará a causa contra ti.” (23:10 e 11.)

E avançando um pouco mais, a transferência continuava, agora do rei para Yahweh, o Messias que havia de vir, como atestam as passagens de Salmos 19:15, 119:151- 154, Provérbios 22:23 e Jeremias 50:34.

O Messias vindouro devia encarnar em Si, e em Sua obra, todas as qualidades e obrigações próprias do go’e hebreu. De fato, o Messias é o nosso Grande Go ‘el, em quem podemos inteiramente confiar.

Voltemos mais uma vez ao texto de Já: “Porque eu sei que o meu Redentor (Go’el) vive, e por fim Se levantará sobre a Terra.” (Já 19:25.) A expressão “levantar”, como aparece no texto, pode ter a conotação ou o sentido do “levantar-se” de uma pessoa, em uma corte de justiça, para fazer a defesa de alguém. Isto pode ser visto, ao se fa­lar de Deus, quando Se levantou “para julgar, e salvar todos os humildes da Terra” (Sal. 76:9).

Nesta altura da exposição do te­ma, podemos formular uma pergunta: Quem seria este redentor de Já? Baseado no contexto histórico, pensa-se que aqui o go’el não pode ser aplicado a nenhum de seus filhos, uma vez que estes já eram mortos (1:13-19), e que de igual forma, não pode referir-se a parentes mais chegados, pois estes se tinham ausentado dele. (19:13 e 14.)

Indaga-se mais, insistindo: Dar-se-ia o caso de haver entre a sua parentela, alguém desconhecido de nós, mas no qual Já depositava toda a sua esperança, de um dia, ainda nesta vida, ser reivindicado, alguém que se “levantando” o de­fenderia? Ë bem provável que isto fosse correto. Já, no caso, nutria no coração a esperança de ver um dia terminado o seu drama, e mais ainda, que alguém, levantando-se, co­mo num tribunal, defendesse a sua inocência, julgando a sua causa.

Não obstante, não nos importa se Já estaria pensando em algum parente amigo, que ao se “levantar sobre a terra”, viraria o seu cativeiro, ainda nesta vida. Não impor­ta que Já mesmo não estivesse pensando na ressurreição. O importante é que a serva do Senhor toma esta passagem, em uma colo­cação secundária, é verdade, e a aplica em uma dezena de vezes a Jesus, como sendo o nosso Grande Redentor (Go’el). (9)

Jesus, o Nosso Redentor Se Jesus é o nosso “Parente próximo”, e cremos que sim, seria possível ver cumpridas nEle, para conosco, as obrigações impostas ao go’el? Com toda a ênfase, podemos responder “sim”. Com relação ao resgate do reino terrestre, uma vez usurpado por Satanás da mão de nossos primeiros pais, é- nos declarado assim, no Apocalipse: “Então ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora veio a salva­ção, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do Seu Cris­to.” (12:10.) E a reintegração de posse, de que falam os profetas antigos.

A serva do Senhor, ao tratar do tema da reintegração do reino, as­sim escreve: “Satanás, em virtude do êxito que obteve em desviar o homem do caminho da obediência, tornou-se ‘o deus deste século’. II Cor. 4:4. O domínio que uma vez pertenceu a Adão passou ao usurpador. Mas o Filho de Deus Se propôs vir à Terra a fim de pagar a penalidade do pecado, e assim não apenas redimir o homem, mas re­cobrar o domínio usurpado. E des­ta restauração que Miquéias profetizou quando disse: ‘A ti, á torre do rebanho, monte da filha de Sião, a ti virá; sim, a ti virá o primeiro do­mínio.’ Miquéias 4:8. O apóstolo Paulo a ela se referiu como a ‘redenção da possessão de Deus’. Efé. 1:14. E o salmista tinha em mente a mesma restauração final do homem em sua herança original quando declarou: ‘Os justos herdarão a Terra e habitarão nela para sempre.’ Sal. 37:29.” (10)

Notamos que como obrigações inerentes às suas funções, o go‘el não só comprava a propriedade que se perdera da mão do parente endividado, mas também o resgatava, caso se vendesse como escravo; e nós, por nada, nos vendemos a Satanás. No entanto, o nosso Redentor declara: “Por nada fostes vendidos; e sem dinheiro sereis resgatados.” (Isa. 52:3.) E João, o revelador, vê profeticamente, o momento apoteótico em que um cântico será entoado em louvor a Jesus, após Ele ter consumado a redenção eterna deste mundo: “Então ouvi que toda criatura que há no Céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Aquele eu está sentado no trono e ao Cordeiro, seja louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos.” (Apoc. 5:13)

Aprendemos também que o go ‘el se casava com a viúva do parente morto, a fim de que o seu nome não desaparecesse de sobre a Ter­ra. Com isto em mente, verifica-se que esta figura se encontra de todo presente no esquema redentorista de Jesus (o nosso Go’el), quando a Escritura Sagrada fala do casa­mento dEle com a Igreja — Sua es­posa (II Cor. 11:2, Apoc. 19:7, 21:2 e 9). “Nunca mais te chamarão: Desamparada: nem a tua terra se denominará jamais: Desolada; mas chamar-te-ão: Hefzibá (Minha-delícia), e à tua terra: Beulá (Desposada); porque o Senhor Se delicia em ti; e a tua terra se desposará.” (Isa. 62:4.)

Observou-se linhas acima, que o go‘el, ou mais especificamente, o go‘el hadam, (traduzido algumas vezes para vingador do sangue), de­via de fato ser aquele que, uma vez ferido o parente, se incumbia de vingar-lhe o sangue, matando o inimigo e criminoso.

Recorda-se que as páginas da História Sagrada, bem como da secular, estão empapadas do sangue de milhares de homens e mulheres, velhos e crianças, que não desejando trair sua consciência, não desejosos de trair o sagrado depósito, depuseram a vida diante de Deus, que tudo vê e julga.

O pior é que muitos destes milhares que morreram, foram silenciados pela morte de modo ignominioso, como as mais abjetas das criaturas. Morreram sob o estigma da vergonha. “Na Terra tinham si­do destruídos, afligidos e atormentados. Milhões baixaram ao túmulo carregados de infâmia, porque recusaram render-se às enganosas pretensões de Satanás. Por tribunais humanos os filhos de Deus fo­ram condenados como os mais vis criminosos.” (11)

“Levantar-Se-ia de sobre a ter­ra” o nosso Go’el, a fim não só de vingar-lhe o sangue, mas julgar-lhe a causa, reabilitando, mostrando a todos, tratar-se na realidade, de homens e mulheres de Deus, “santos do Altíssimo”, como fala o profeta Daniel? No Apocalipse, ao falar dos mártires de Deus, sob a figura das “almas debaixo do altar”, João coloca em sua boca, es­tas palavras: “Até quando, á Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a Ter­ra?” (6:10). O texto sagrado cont­nua dizendo: “E lhes disseram que repousassem ainda por pouco tem­po, até que também se completas­se o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos co­mo igualmente eles foram” (v. 11).

E isto evidentemente pode, com a mesma força, ser aplicado a nós outros, que hoje vivemos neste mundo. Quanta calúnia, maldade e injustiça não fere o coração dos fi­lhos de Deus, levando-os ao sofri­mento e mesmo à morte?

Sabemos que celeremente se aproxima o dia em que virá o nosso Redentor (Go’el). Diríamos, para usar a expressão de Jó, que Ele mui breve “subirá da terra”, para vindicar nossa causa, e vingar nosso sangue. Fala assim a serva do Senhor: “Brevemente estarão perante o Juiz de toda a Terra, para prestar contas pelos sofrimentos físicos e morais infligidos à Sua he­rança. Podem agora entregar-se a acusações falsas, podem injuriar os que Deus apontou para Sua obra, podem entregar os crentes à prisão, aos grilhões, ao desterro e à morte; todavia serão argüidos por toda a agonia de sofrimento e toda lágrima vertida. Deus lhes pagará dobradamente por seus peca­dos”. (12) Deus mesmo já dissera, por boca de Moisés: “A Mim Me pertence a vingança, a retribui­ção... porque o dia da sua calamidade está próximo, e o seu destino se apressa em chegar. Porque o Senhor fará justiça ao Seu po­vo...” (Deut. 32:35 e 36).

Digo a você, leitor, que na realidade não sei e nem mesmo posso explicar o que se passa, e o porquê de sua vida, que neste tempo pode estar sobremaneira conturbada. Entregue tudo, mas tudo mesmo na mão do nosso Grande Go ‘el, que tudo vê e tudo julga. Dar-se-ia o caso de haver em seus olhos uma lágrima sufocada, ou um sonho desfeito, ou ainda, segundo as aparências, sua vida esteja verdadeiramente arruinada? Em tudo isto você foi inocente? Não procure vingança. Lembre-se do que Deus diz: “Minha é a vingança.” Falando daquele tempo, que celeremente se aproxima, a serva do Senhor declara: “Então as sentenças dadas na Terra serão inverti­das. Então ‘tirará o opróbrio do Seu povo de toda a Terra’. Vestes brancas dar-se-ão a todos eles. ‘E chamar-lhes-ão: povo santo, remi­dos do Senhor.’ Qualquer que tenha sido a cruz que suportaram, quaisquer as perdas sofridas, qual­quer a perseguição que padece­ram,mesmo a perda da vida temporal, os filhos de Deus serão amplamente recompensados. ‘Verão o Seu rosto, e nas suas testas estará o Seu nome.” (13) Concluindo, podemos com segurança dizer: “Eu sei que o meu Go’el vive, e por fim Se levantará sobre a Terra. Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-Lo-ei por mim mesmo, os meus olhos O verão, e não outros.” (Jó 19:25-27.) Amém, Aleluia.



Referências:



1.Meek, Th. J., Job XIX, 25-27, Vetus Testamentum, vol. VI, 1956, pág. 100.

2.ZINK, J. K., Impatient Job – an iterpretation of Job 19, 25-27, JBL, vol. LXXXIV, part II, June 1965, pág. 147.

3.Ibidem.

4.Ibidem.

5.STAMM, J. J., Go’el, Geulah Redimir, Diccionario Teológico Del Antigo Testamento, Madrid, Ediciones Cristandad, 1978, tomo I, pág. 902.

6.Cf. STAMM, op. Cit., pág. 554, há aqueles que não obstante, pensam que o levirato não fazia parte das obrigações do go’el.

7.Para Ilustração, bastam os três exemplos: Medicina e Salvação, pág. 33; Mensagens aos Jovens, pág. 410; O Grande Conflito, pág. 298.

8.White, E. G., Profetas e Reis, S. Paulo: CPB, 1960, pág. 682.

9.White, E. G., Parábolas de Jesus, S. Paulo: CPB, 1967, pág. 179.

10.Idem, págs. 178 e 179.

11.Ibidem.



Fonte: Revista Adventista, Junho de 1984, págs. 43-45

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